quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Impressões Kafkianas


O leitor, ignorante como sempre, recebe meras migalhas de cada livro. Fragmentos de vidas e sensações que mal rabiscam os odores inpalavreáveis da realidade. Ocasionalmente, porém, um escritor tenta fazer do livro algo maior que sua própria vida, para que lhe sirva de morada, ou abrigo. Refugia-se em palavras, para que não tenha que viver. Kafka, o escritor da freudiana, insegura e opressora germânia do começo do século XX foi um desses.

Não sou um grande conhecedor da obra deste escritor visto que li dele apenas dois livros, mas sua vida (sua nua intimidade) está tão vívida nestes par de escritos, que somos hoje quase amigos.

Kafka pode muito bem ser visto como um escritor "difícil", mas apenas para os de espírito leve e despreocupado. Para todos os outros, que souberem se abrir ao livro tanto quanto ele se abriu ao leitor, seu texto é límpido como água. Kafka não escrevia propriamente, ele fazia psicanálise com sua pena, tinta e papel. Sua preocupação única era trazer à luz a sua escuridão. A graça dos seus escritos está em perceber a universalidade do mal-estar humano a partir de um indivíduo profundamente solitário.

O primeiro livro que li, há muitos anos, foi "O processo", que narrava um julgamento absurdo, em diálogos desconcertantes e ambientes surreais feitos para sufocar o leitor. O acusado era um certo senhor K. que se via enrolado num processo que ele mesmo falhava em compreender. O desavisado leitor se sentirá perdido, o atento compreenderá facilmente. Ora pois, o livro inteiro se passa dentro de sua consciência. O julgamento é a catarse de seu próprio torturante sentimento de culpa, e seu crime é sua incapacidade de se relacionar de modo sincero. Sua incapacidade de superar o formalismo e as artificialidades da sua sociedade que o haviam recheado de complexos e um horror insuperável pelo sexo. Um prato cheio para as teorias de Sigmund Freud.

O livro que li recentemente foi "Carta ao Pai", que era não um livro, mas realmente uma carta, que este pretendia enviar a seu pai. Como bom "fracassado" que era, Kafka nunca enviou a carta a quem ele pretendia. O autor, que morreu jovem, desconhecido, e pouco publicado, pediu a seus amigos que queimassem todos os seus manuscritos, ao que foi diligentemente não atendido e enganado. Sua carta não foi parar na fogueira, nem nas mãos de seu pai, mas sim nas mãos de uma humanidade inteira de pais, mães e filhos.

Minha leitura foi rápida e transformadora. A princípio julguei que esta leitura me faria pensar em minha própria relação de filho. Me imaginei no lugar de Kafka, me identificando com o seu sofrimento perante as injustiças de seu pai, mas eu estava totalmente enganado. Do começo ao fim do livro meu pensamento estava voltado para minha própria posição como pai e meu relacionamento com meu filho. Os pensamentos e críticas de Kafka a seu pai me fizeram refletir muito mais sobre a maneira como devo encarar minha própria posição de paternidade. E devo confessor que gostei disso. Em primeiro lugar porque vi que os erros cometidos pelo pai de Kafka em nada podiam ser comparados com as críticas que faço (e todos fazemos) ao meu pai. Não. O Pai de Kafka era muitíssimo pior do que eu poderia ter experimentado em vida (eis, pois, um sentimento estranhamente prazeroso que traz estes livros, visto que constatei, como outros também devem constatar, que não sou um homem tão complexado e traumatizado quanto o pobre Kafka. Que bizarro alívio). Em segundo lugar, gostei de perceber que minha preocupação não estava mais com o passado e sim com o futuro. Com as minhas próprias ações, e não as ações de outro. Com a felicidade de alguém que amo, não com a minha própria infelicidade. Isso é algo a ser comemorado.

Que terrível é agradecer Kafka, mas assim devo fazer, pois o seu sofrimento está aí para que não mais se repita.

Milena Jesenska, tradutora e confidente de Kafka, escreveu seu obituário o descrevendo como "Sábio demais para viver, fraco demais para lutar". Para ela, o autor havia sido "condenado a ver o mundo com clareza tão cegante que a achava insuportável". Penso eu, hoje, "que coisa terrível".

Antes de terminar meu texto quero registrar algo sobre a sincronicidade que tanto nos assola. Duas semanas depois da leitura desse livro tive a oportunidade de assistir um monólogo baseado na vida e obra do pobre Kafka, montado pelo tão respeitado grupo de teatro campinense LUME. Trechos do livro estavam presentes na boca do autor, e seu poder se multiplicou em mim. Lembro ainda que anos antes eu havia assistido uma peça brilhante de um outro grupo de Campinas chamado "Primus" baseada em outro livro Kafkiano de nome "Um relatório para a Academia" onde um macaco relata aos seres humanos como havia conseguido sair de sua jaula e ser aceito na sociedade civilizada. Minha reflexão é que a cada novo livro que leio de algum autor, melhor compreendo as leituras anteriores.

Tenho tanto para ler ainda....

A última citação retiro de um livro que não sei se lerei algum dia chamado "cartas a Milena"

A fácil possibilidade de se escrever cartas deve ter trazido tormenta e ruina às almas do mundo. Escrever cartas é, em verdade, se relacionar com fantasmas, e de modo algum apenas os fantasmas daquele para quem se escreve, mas também os próprio fantasma, que secretamente de desenvolve dentro da carta que se está escrevendo.

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