sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Pausa no Blog

Há tanto tempo fui podado pela urgência das minhas fomes que perdi a qualquer coisa que aqui me vinha.

Este blog não mais flui, embora fluido eu continue sendo.

Não estarei mais aqui, postando. Esta página está paralisada, anestesiada, como água parada.

Vou nessa....

domingo, 15 de julho de 2012

Para que cada coisa tenha nome

Não lembro quem foi o pensador que disse que "só enxergamos aquilo que podemos dar nome". É uma bela frase e, embora possa parecer um tanto exagerada, receio que sou levado a concordar com ela. Ao menos dentro daquilo que entendo ser "enxergar". Os olhos são apenas intermediários, um par de mensageiros, pois é a nossa mente que realmente enxerga as coisas.


Permita-me explicar melhor. Peguemos uma imagem como esta acima. Se trata de uma foto de vegetação do cerrado e seria para mim nada mais que "mato" dividido, no máximo, entre galhos e folhas, mas para um biólogo ou quem sabe para um índio nativo da região de onde a foto foi tirada, é uma composição com espécies de plantas e animais, localizados no espaço e no tempo (verão, inverno), comida, remédio, esconderijo,  cheiros, perfumes, flores, parasitas, pragas, estames, talos, florescências. Cada coisa se abre na mente acionada por uma chave que é só sua. O seu nome. São estas palavras que indexam cada ideia e as tornam acessíveis. Enquanto eu - em minha ignorância - enxergaria apenas uma coisa - mato - aqueles que detém estas chaves podem ver inúmeros detalhes. E afirmo que se eu não possuísse a palavra "pássaro" em meu vocabulário, não seria capaz de enxergar o pássaro que está ali, discretamente presente nessa foto. Você consegue vê-lo? Se consegue é apenas porque você construiu o conceito de "pássaro" em sua mente.

Indo mais longe, qualquer coisa com penas que voa é para mim "pássaro" até que eu possa dizer precisamente que pássaro é esse, e meu olhar passa a ver para além da velha generalização. Assim poderei enxergar realmente o formato de seu bico, as cores de sua penagem, ou até mesmo, o tipo de galho da árvore em que aquele pássaro prefere pousar. A cada coisa darei um nome, não apenas pelo desejo de vocabulário, mas para expandir a visão.

O Ver e o Entender são duas coisas que crescem juntos.

Essa reflexão me remete ao famoso senhor da imagem abaixo. Enquanto sigo na minha busca em determinar o nome exato da espécie de Bauhinia que cresce na minha janela (são, até onde eu sei, bem mais que 150 espécies), bem como o nome de todas as espécies de pássaros que a frequentam, sem falar no nome de cada líquen que cresce em seu tronco, e quem sabe um dia, o nome de cada inseto que visita suas flores, penso em Carl Linnaeus (1707 - 1778) e o sorriso com que sorri em seu quadro.


É um sorriso agradável de um homem feliz pois foi alguém que, sem dúvida, enxergava muitíssimo bem. O sorriso de um homem que está me dizendo "tudo que você está fazendo agora eu já fiz há quase trezentos anos atrás". Sinto até uma espécie de condescendência intelectual emanando dele como quem tem certeza que está certo ao ponto de não sentir mais a urgência em se provar mas um prazer em passar sua sabedoria adiante. Linnaeus é lembrado até hoje como o cientista que inventou o sistema de nomenclatura de espécies em uso até hoje. Não é pouca coisa. Naturalmente houveram modernizações, mas a essência do modelo pode ser atribuído ao seu trabalho pioneiro que, entre outras coisas, estabeleceu a nomenclatura binomial para as espécies (gênero, espécie) e audaciosamente incluiu o próprio ser humano como parte do reino animal..


É lembrando dele que comemoro a entrada de mais uma espécie de pássaro em minha mente. A foto acima é uma das muitas que tirei de pássaros pousados em minha árvore. A maioria deles ainda me são apenas "pássaro", mas hoje este visitante recebeu seu rótulo. Ao que tudo indica se trata de um sabiá-do-campo, de nome científico mimus saturninus, e este indivíduo em particular é um assíduo frequentador de minha árvore favorita, vindo, ao menos, todo fim de tarde pousar nestes mesmos galhos (notei que raramente pousa em outra parte da árvore que não essa). Pelo que li sobre sua espécie, é conhecido como um habilidoso imitador do canto de outros pássaros, e até de sons de insetos, sendo dono de repertórios gigantescos de diferentes cantos (aqui tem um exemplo gravado com mais de 10 minutos de cantos variados, sem repetições, produzidos por um único - criativo - individuo). Embora seja um pássaro com considerável alterações de aparência entre as suas sub-espécies, consegui reconhê-lo pela faixa escura nos olhos que parecem se fundir ao seu bico, e, em especial, por um comportamento bem particular : sempre que pousa em algum galho ele apresenta o movimento de levantar a cauda.


Mimus saturninus.
Obrigado, Linnaeus!


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Anu Preto (Crotophaga Ani)

Sigo meu passa-tempo de botânico amador observando agora os visitantes voadores de minha árvore favorita. Dessa vez minha atenção vai para esse curioso pássaro negro de estranho bico que pousou aqui recentemente.

 
Grande, corpulento, belo em sua estranheza e lento (para um pássaro), costuma aparecer aqui em pequenos grupos sem fazer muito alarde (embora as fontes que eu encontrei sobre esse pássaro descrevam o seu comportamento como sendo barulhento). Não foi difícil identificá-lo, com esse bico todo peculiar, e suas penas negras brilhantes (observem os anéis azulados na ponta das penas). É mais conhecido como Anu Preto e tem o nome científico de Crotophaga Ani. Ambos os nomes fazem referência ao nome dado pelos nativos indígenas a esse pássaro: Ani.


Aqui tem uma fonte bacana de fotos, filmes e sons do Anu Preto no Internet Bird Collection
http://ibc.lynxeds.com/species/smooth-billed-ani-crotophaga-ani
Escutando o som gravado do canto do Anu, não pude deixar de constatar como é comum se ouvir o seu som por essas bandas.


Não se trata de uma espécie em perigo de extinção, (longe disso) e deve continuar a visitar minha árvore pouco se preocupando com o crescimento da cidade, ao menos enquanto houver cerrado a cercando. Não é, porém, um pássaro restrito ao cerrado, vivendo em climas quentes de norte a sul do nosso continente. Comem sementes, mas preferem artrópodes, e ainda não pude identificar se têm interesse pelas sementes da Bauhinia.


Assim como ocorreu com grande parte dos pássaros, o Anu Preto (sugiro sempre usarem o nome desse pássaro no singular) também se tornou menos frequente ao final do período de chuvas por aqui, mas não é um pássaro que chame atenção. Para minha quase-surpresa essa espécie é da família do Cuco (cuculidae), aquele pássaro mau-caráter que põe os seus óvos no ninho de outros pássaros (só lembrando que, é claro, na natureza não há julgamentos morais). O anu, porém, tem outro comportamento. Os seus ovos são postos em ninhos comunitários por várias fêmeas de um grupo, e que compartilham  a incubação e alimentação e onde filhotes de uma ninhada anterior ajudam na alimentação da ninhada seguinte. Mais um exemplo interessante de colaboração na natureza.

domingo, 24 de junho de 2012

Uma árvore é como um livro

De tanto ler livros, fiquei com vontade de plantar uma árvore. Alguma relação entre uma e outra há de haver.
Vista de minha janela 

A janela de minha sala sombreia-se numa linda árvore brasiliense. Talvez por ser ela mais alta que meu prédio, e por estar aqui há mais tempo que eu, seu aspecto retorcido me inspira respeito. Uma coisa em particular me causa admiração nela: a grande quantidade de pássaros que a frequentam, e em especial um tipo que a cada dois ou três minutos da o ar de sua graça: Beija flores (especialmente na época de chuvas). Com esta árvore ao meu lado não resisto em sentir certa superioridade em relação àqueles que põe aquelas medonhas flores de plástico acoplados a uma garrafinha com água e açúcar para atrair - sem sucesso - esses mesmos beija-flores.  Plantem uma árvore, estúpidos. (Devo confessar, porém, que eu também já tive uma dessas flores de plástico)

 Longe de ser frondosa, essa Bauhinia já se deixou ressecar bastante pelo fim das chuvas

É um local deveras bem frequentado, aqui. Tantas espécies de passarinhos pequenos e nem tão pequenos, que me envergonho em não saber seus nomes. Tomei, portanto, uma decisão. Vou plantar uma muda dessa bela árvore, mas antes, devo saber tudo que puder sobre ela. A que espécie pertence? Porque os pássaros a apreciam tanto? Que pássaros são estes? Como e onde devo plantar sua muda? Como fazer para ajudar a germinar sua semente? (sim, pois, quero plantar uma filha dessa mesma árvore).

Sementes que encontrei espalhados embaixo da árvore
Hoje tirei minhas primeiras fotos de minha nova-velha companheira e iniciei a pesquisa. Minhas suspeitas de botânico-mais-que-amador se confirmaram de que se tratava de uma Pata-de-vaca, ou mais precisamente, uma Bauhinia, mas qual espécie será? Só na wikipedia listei 125 espécies diferentes de Bauhinia. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bauhinia). O meu trabalho está só começando.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ao Silêncio


À tristeza
O sucesso de mais uma batida de coração

À finitude
A profundidade de um oceano em ebulição

Ao anonimato
A última ilha deserta perfeita do planeta

À amargura
O beijo inquebrável dos lábios do céu

À insipidez
Cavalgadas de mulheres ruivas em cavalos marinhos

Ao medo
Um palco desmesurável de tão imenso

À velhice
O bolo mais gostoso que você nunca comeu

Ao erro
O tempo, a luz e a voz de Björk

À perda
O piedoso e paciente botão de reset

À feiura
O renascimento diário de cada coisa viva

Ao silêncio
Apenas os estalidos de meu teclado de plástico



Ao vazio
Minha imaginação recoberta de surpresinhas




Agua pensante
Abril de 2012



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Letra de Música - Humano

Ventres sorridentes
Zombam de minha solidão de marfim
Sou casa sem móveis
Janela pintada de branco
Sou estátua
Indeciso ao ponto
do mais desesperador dos silêncios

#

Que loba melancolia
me solapa
com a ponta de sua pata
Me aponta a cama voadora
Onde acontece o nada
E nado endoidecido
Onde ela dormia mornamente mole
se sabendo a número dois da criação

#

Eu não vim aqui de tão longe
Só para dar meia volta
Neste mundo arredondado
o alto salto foi dado
E caí, prostrado, em outra revolta

Eu vim de uma ilha partida
para reviver mais outra re-vida
neste mundo imundo e atravessado
o dito re-dito maldito ao meu lado
a esperança ja quase esquecida
querida ferida não serei curado

Eu não vim aqui por acaso
para paralisar meu atraso
trouxe três tribunais na mente
passado, futuro e presente
faltou-me dizer, do não dito,
a outra metade do infinito
E buscarei seguir o meu plano
Para que um dia eu seja humano

Eu não vim aqui de sapato
Para poder parecer mais sensato
No portão grandão da revolução
Nenhuma tranca existe de fato
E relato o meu chão florianopolitano
Para que um dia eu seja humano

#

Estou certo que estas estranhas paredes me estranham mais que eu a elas. Meus dedos são as línguas rugosas de um polvo negro. Não corro, escorro... Descobri que sólido eu não sou. Estou submarino neste mar urbano. Estou aqui, sem asas, orgulhoso como um tolo, respirando quase todos os dias. Cada uma das pedras falou pois estão cansadas do meu silêncio. Não há mais impérios, apenas cores nos mapas velhos, e overdoses de vaidades. Hoje estou só, amanhã só haverão lembranças. Pelo que sei o universo só nasceu depois de mim, e nós todos somos eternos. Nossa pátria são nossas mortes, embora a morte mesma não exista, pois apenas a existência existe, e a nossa pátria verdadeira são nossos estômagos. E amo pois muito embora você não exista (apenas o eu existe), há um alguém no eu, e um outro eu em você. Nós somos fracos. Fortes mesmo são as formigas, que mastigam o mundo em suas mandíbulinhas. Só o que temos são nossas gargalhadas, mas a risada sempre existiu, o que nós inventamos foram os motivos. Meus sonhos são a longa gargalhada de um corvo. Metamorfoseado, duvido até mesmo de meus nomes, e de cada palavra do mundo, pois duvidar é a maneira ocidental de respeitar. Meu nome, estranho em si mesmo, por ser mais símbolo que substância, é Alexei Alves de Queiroz. Pronuncio alto o meu nome, deliciando-me com seus fonemas engraçados. Repeti-o cento e quatro vezes, até ele se transformar em um sânscrito vagabundo. Até quase sentir seu relevo. Até alucinar-me fora de mim. Nada sou. Sou músico, sou cientísta? Pai, filho, irmão, estudante e professor, amigo, fugitivo, estranho, denso, hermético, feliz, gentil, frio, calmo, filósofo, sem-destino, florianopolitano. A experiência mais importante e traumática de minha vida, meu nascimento, não recordo. O que havia de memória? O que havia de entendimento? Que sentido poderia eu fazer daquele momento? Mente e corpo ainda em total descoordenação, pensamentos em total liberdade vazia. O vácuo de uma mente em branco. Se eu visse chuva caindo pra cima, elefantes voadores miando ou copos desquebrando, tudo seria tão normal quanto tudo que existe, pois tudo no mundo era igualmente absurdo.

#

Eu adoro a certeza que existo
Derrubando estrelas na bala
Afastado a maré na chicotada
Sou meu melhor amigo
Ao menos concordo comigo
Sou louco, mas não sou maluco.
A consequência da consciência é a solidão.
Ai que medo! Esse poema pode não dar certo

#

Se a verdade fosse algo evidente, a ciência seria supérflua, a arte seria inútil e a religião seria impossível.

A orquestra de peixes


Loucos também podem acordar cedo
Nem por isso são assim tão pássaros

O que são então?
São crianças apodrecidas
Peter pans tristes
Viciados em magia
E seus luares longos
Lamentaram em grego
na gruta do Deus orelhudo
Andam com tochas nas mãos
Queimarão nossas casas
E todas as certezas do mundo
Farão o contrário do contrário do contrário
Dividindo por zero o número imaginário

Regentes da orquestra de peixes
Explicarão apenas:
A música existe para confundir
enchendo a mente de dançarinas

#

O mar é a perdição de cada onda
O mar é aquele que sabe mais que você
É aquele que vê teus sonhos
com piedade quase fingida
É aquele que te faz pequeno
O mar é o que mais existe
E ante todos os demais
de relance se supõe tudo em si próprio

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Música para calmarias


Para esta noite silenciosa posto esta música. Dessas que a gente ouve e tem a impressão de lembrá-la de alguma vida passada. Dessas que a gente consegue ouvir cada nota, cada engrenagenzinha do piano, cada dedo empurrado cada tecla.

Erik Satie - Gnossienne No. 3

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Feliz livro novo


Volto ao Blog após longa pausa causado pelas
demandas de fim de ano.

O mundo está diferente, como sempre, mas sigo lendo.


2011 veio, desfilou e acabou-se, e mesmo assim Kant ainda me parece impenetrável.
Cansei um pouco dele, mas o admiro um pouco mais que antes.



Um viva para ele, Platão e Pitágoras.
Viva Darcy Ribeiro e Hobsbawm
Viva Kropotkin
Viva Gandhi.

2011 foi o ano da curiosidade irrepreendida. O livro é a invenção maior.

Agora estou com vontade de ler algo do teólogo Paul Tillich
e de ler coisas bem diferentes.
Na verdade...
Este ano quero ler alguns livros de ficção. Quero os clássicos.
Quero os devaneios maiores da humanidade.
Sinto sede de sabê-los antes que tudo desmorone num apocalipse grotesco.
Hoje fui água pensante novamente.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Tirando o chapéu para Chopin

Apenas uma música fantástica de Chopin que eu nunca havia escutado

Noturno em Dó menor, Op 48, No 1.



Fiquei pensando.....
Deve se escutar esta música três vezes seguida.

Na primeira vez que a ouvimos atentamente, ela se apresenta encantadora, desafiadora, e reveladora. Na segunda vez ela aparenta compreensível e monumentalmente bela. Mas é somente depois da terceira vez que a escutamos é que conseguimos começar a entendê-la. Isso é nada mais, apenas e tão somente mais uma obra prima incrível do romantismo europeu. Mais uma que corremos o risco de viver uma vida inteira sem o privilégio de escutar. Apogeu do piano. A vitória do emocional sobre o superficial. Exposição de possibilidades de maravilhamento. Particular e universal ao mesmo tempo.

Bela música.

Então...

Sendo ele professor de música de sucesso, e autor de música escrita, polonês exilado em Paris, Frédéric Chopin, 1810 - 1849, (essa foto histórica foi de seu último ano de vida) se tornou especialmente famoso após Schumann declarar em seu jornal "Retirem os chapéus. Eis um gênio, cavalheiros."
Interessante notar como a própria idéia de genialidade era um conceito que vivia ali também o seu apogeu.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Teoria dos jogos

Eis aqui, em vídeo, uma aula brilhante sobre uma das teorias de matemática aplicada mais interessantes do século XX. A teoria dos jogos é usada em economia, biologia, comportamento, direito, filosofia e, é claro, esportes.
Desse vídeo, entre outras coisas, eu descobri que existe fundamentação matemática para provar que a competição, sozinha, ao contrário do que Adam Smith havia proposto, não produz os melhores resultados para a coletividade. Belíssima crítica ao princípio um tanto utilitarista do egoísmo como benéfico à sociedade. A demonstração é que a melhor saída para nós é a colaboração.

É assistir para entender




Aproveito para incluir aqui uma outra aula sobre raciocínio moral dado por um professor de Harvard. Neste caso o filme me ajudou a entender melhor a disputa entre o consequencialismo dos utilitaristas, seguidores de Jeremy Bentham e Stuart Mill, e a Deontologia, simbolizado por Kant.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Platão, Kant, e Bharatanatyam

Estive lendo um livro sobre filosofia da música. O primeiro capítulo olha para a estética grega, como haveria de ser, por meio de Platão. O segundo capítulo me está sendo muito mais difícil e se debruça sobre a visão de Kant sobre a arte. .... depois escrevo sobre minhas impressões desse livro.

O vídeo que me inspirou hoje foi esse. Me fez pensar sobre a relação da arte com idealismo, idealização, imaginação, perfeição, exatidão, e eternidade (e feminino), tudo aqui inserido em sons, cores e movimentos corporais, como se tentasse nos provar que a realidade é tão boa e tão fluida quanto a terra dos sonhos.
Savitha Sastry - Bharatanatyam


Também linkei aqui uma bela demonstração de Odissi, uma outra forma de dança indiana, abundantemente enriquecida pelas tornozeleiras com guizos.



Por outro lado, muito diferentemente também escutei este outro vídeo de jazz e me lembrei da relação da arte com o caos, o inventivo, o novo, o aleatório, o bruto, o visceral e o efêmero (e masculino).

Herbie Hancock e Bob Mcferrin - Oleo de Sonny Rollins





.... e tudo se completa como num ying yang pois um não existe sem o outro. A segurança dos movimentos da dançarina contraditoriamente revela sua insegurança perante a instabilidade da existência. Busca aquilo que sente que lhe falta. A sua repetição dos movimentos ideais indica o medo do caos, e a atração pela segurança. A estabilidade oferecida pela dançarina é o prêmio de quem a olha. Já a desenvoltura dos Jazzistas perante o Caos indica a tranquilidade e segurança que têm ante as instabilidades da existência humana. A sua busca por caos e insegurança indica a sua segurança pessoal original, ao contrário da dançarina cuja busca por ordem revela a psique temerosa pela eventual perda da perfeição. A arte, portanto, não é apenas beleza, mas também tensão. A arte, pode ser isso, e todo o seu oposto. Sua dualidade inserida em si mesma, incapturável. A música é feita da mesma carne que nos faz. Música não é feito de sons. É feita de gente, e é, portanto, tão complexa quanto.



Consigo unir estas idéia ao que li no livro "O Tao da Música" de Carlos D. Fregtman. No capítulo 2 (página 30), ele usa uma maneira muito curiosa para diferenciar Ocidente de Oriente. Compara duas imagens geométricas de pirâmide, uma delas com a pirâmide da maneira que a conhecemos, e outra a mesma de cabeça para baixo. Nesse caso sua base voltada para cima, e sua ponta na parte inferior. A primeira imagem, da pirâmide voltada pra cima e sua base firmemente assentada no chão é - explica ele muito bem - o paradigma oriental, onde a existência, o equilíbrio e a harmonia do corpo se centra no umbigo, e o foco está nos pés. No paradigma ocidental, da pirâmide invertida, o centro da existência é a mente, dentro do crânio, no topo superior. O foco ocidental está na parte de cima do corpo.

Tudo isso é complexo e talvez não soe comprovável, mas os exemplos postos aqui, eu creio, exemplificam muito essa idéia. A apresentação de indiana, especialmente a Odissi, está toda firmemente apoiada no chão, enquanto a música do grupo de jazz com Bob Mcferrin está toda centrada na mente, cabecístico, emocional porém muito intelectual, do pescoço para cima, no vôo sem as amarras da gravidade ou existência física. A pirâmide está de cabeça para baixo.

Oriente...... ocidente

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Novamente o oriente...

Tenho estudado muito algumas músicas como forma de conhecer melhor a música da índia. Destaco aqui duas. Ambas são músicas de devoção, amor ao divino e elevação espiritual mas pertencem a esferas bastante diferentes. O primeiro uma peça de Nusrat Fateh Ali Khan, verdadeira lenda da música da região paquistanesa do Punjab e mestre do estilo qawwali. O nome da peça é Charkha, e faz referência ao tear manual. Postei aqui somente a segunda parte para chegar logo na seção de improvisações vocais, que é o que mais me assombra. (OBS: Uma única peça dessas pode durar mais de meia hora)




O segundo é um Bhajan cantado por Jandit Pasraj chamado Kasturi Tilakam e que celebra as belezas de Krishna. Uma peça muito mais curta e direta.




Noite a dentro escuto atrás dos detalhes. Me desafio a desvendar suas justezas melódicas. Duas maravilhas. Fortemente relacionadas entre si porém muitíssimo diferentes. O contraste acentuado entre as duas por si só já me diz muito sobre a diversidade do sub-continente indiano.

Depois que eu terminar de escutar e reescutar essas músicas farei um lanche e escreverei alguma coisa até a hora de dormir.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Catálogo Livre de Sensações Humanas

sensação catalogável número 327:
Nome genérico: Impertubabilidade extremada adquirida.


Início de tarde quente de primavera.
Nuvens de bolinhas,
profunda facilidade no respirar.
Noção de olfato aguçado.
Ausência de fome ou de peso de comida em processo
de digestão.
Brisa irregular se esgueirando por dentro das
roupas e objetos.
Camiseta limpa, cabelo com restos de
agua e sabonete.
Relaxamento no pescoço, pele fria.
Ausência de perigo imediato.
Medos modestos.
Memórias novas e sonoras, esquecimentos convenientes.
A carga do apego a metas futuras nos ombros e, com isso,
uma suave sensação de pressa, mas não de urgência.
Mente consciente voltada para futuro imediato
porém adicionada, inadvertidamente, com
o sabor salgado das expectativas antigas requentadas.
Salada com shoyo, suco gelado recém-espremido.
Regressão saudosa suave a lembranças infantís.
Música mental semi-nostálgica.
Luzes amareladas.


O sentimento No.327 é, sem dúvida, um dos
daqueles classificáveis como "felizes", mas
exige satisfação sensorial.... Especialmente
o sub-tipo 327-B, que ocorre quando o
sentimento em questão é experimentado
em ambiente externo.


A 327 é uma das minhas favoritas.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Impressões Kafkianas


O leitor, ignorante como sempre, recebe meras migalhas de cada livro. Fragmentos de vidas e sensações que mal rabiscam os odores inpalavreáveis da realidade. Ocasionalmente, porém, um escritor tenta fazer do livro algo maior que sua própria vida, para que lhe sirva de morada, ou abrigo. Refugia-se em palavras, para que não tenha que viver. Kafka, o escritor da freudiana, insegura e opressora germânia do começo do século XX foi um desses.

Não sou um grande conhecedor da obra deste escritor visto que li dele apenas dois livros, mas sua vida (sua nua intimidade) está tão vívida nestes par de escritos, que somos hoje quase amigos.

Kafka pode muito bem ser visto como um escritor "difícil", mas apenas para os de espírito leve e despreocupado. Para todos os outros, que souberem se abrir ao livro tanto quanto ele se abriu ao leitor, seu texto é límpido como água. Kafka não escrevia propriamente, ele fazia psicanálise com sua pena, tinta e papel. Sua preocupação única era trazer à luz a sua escuridão. A graça dos seus escritos está em perceber a universalidade do mal-estar humano a partir de um indivíduo profundamente solitário.

O primeiro livro que li, há muitos anos, foi "O processo", que narrava um julgamento absurdo, em diálogos desconcertantes e ambientes surreais feitos para sufocar o leitor. O acusado era um certo senhor K. que se via enrolado num processo que ele mesmo falhava em compreender. O desavisado leitor se sentirá perdido, o atento compreenderá facilmente. Ora pois, o livro inteiro se passa dentro de sua consciência. O julgamento é a catarse de seu próprio torturante sentimento de culpa, e seu crime é sua incapacidade de se relacionar de modo sincero. Sua incapacidade de superar o formalismo e as artificialidades da sua sociedade que o haviam recheado de complexos e um horror insuperável pelo sexo. Um prato cheio para as teorias de Sigmund Freud.

O livro que li recentemente foi "Carta ao Pai", que era não um livro, mas realmente uma carta, que este pretendia enviar a seu pai. Como bom "fracassado" que era, Kafka nunca enviou a carta a quem ele pretendia. O autor, que morreu jovem, desconhecido, e pouco publicado, pediu a seus amigos que queimassem todos os seus manuscritos, ao que foi diligentemente não atendido e enganado. Sua carta não foi parar na fogueira, nem nas mãos de seu pai, mas sim nas mãos de uma humanidade inteira de pais, mães e filhos.

Minha leitura foi rápida e transformadora. A princípio julguei que esta leitura me faria pensar em minha própria relação de filho. Me imaginei no lugar de Kafka, me identificando com o seu sofrimento perante as injustiças de seu pai, mas eu estava totalmente enganado. Do começo ao fim do livro meu pensamento estava voltado para minha própria posição como pai e meu relacionamento com meu filho. Os pensamentos e críticas de Kafka a seu pai me fizeram refletir muito mais sobre a maneira como devo encarar minha própria posição de paternidade. E devo confessor que gostei disso. Em primeiro lugar porque vi que os erros cometidos pelo pai de Kafka em nada podiam ser comparados com as críticas que faço (e todos fazemos) ao meu pai. Não. O Pai de Kafka era muitíssimo pior do que eu poderia ter experimentado em vida (eis, pois, um sentimento estranhamente prazeroso que traz estes livros, visto que constatei, como outros também devem constatar, que não sou um homem tão complexado e traumatizado quanto o pobre Kafka. Que bizarro alívio). Em segundo lugar, gostei de perceber que minha preocupação não estava mais com o passado e sim com o futuro. Com as minhas próprias ações, e não as ações de outro. Com a felicidade de alguém que amo, não com a minha própria infelicidade. Isso é algo a ser comemorado.

Que terrível é agradecer Kafka, mas assim devo fazer, pois o seu sofrimento está aí para que não mais se repita.

Milena Jesenska, tradutora e confidente de Kafka, escreveu seu obituário o descrevendo como "Sábio demais para viver, fraco demais para lutar". Para ela, o autor havia sido "condenado a ver o mundo com clareza tão cegante que a achava insuportável". Penso eu, hoje, "que coisa terrível".

Antes de terminar meu texto quero registrar algo sobre a sincronicidade que tanto nos assola. Duas semanas depois da leitura desse livro tive a oportunidade de assistir um monólogo baseado na vida e obra do pobre Kafka, montado pelo tão respeitado grupo de teatro campinense LUME. Trechos do livro estavam presentes na boca do autor, e seu poder se multiplicou em mim. Lembro ainda que anos antes eu havia assistido uma peça brilhante de um outro grupo de Campinas chamado "Primus" baseada em outro livro Kafkiano de nome "Um relatório para a Academia" onde um macaco relata aos seres humanos como havia conseguido sair de sua jaula e ser aceito na sociedade civilizada. Minha reflexão é que a cada novo livro que leio de algum autor, melhor compreendo as leituras anteriores.

Tenho tanto para ler ainda....

A última citação retiro de um livro que não sei se lerei algum dia chamado "cartas a Milena"

A fácil possibilidade de se escrever cartas deve ter trazido tormenta e ruina às almas do mundo. Escrever cartas é, em verdade, se relacionar com fantasmas, e de modo algum apenas os fantasmas daquele para quem se escreve, mas também os próprio fantasma, que secretamente de desenvolve dentro da carta que se está escrevendo.

sábado, 17 de setembro de 2011

para Debussy (e sua música colorida)

Fotografias, livros e cartas são as ruínas de um século dezenove
Todos seus homens e mulheres estão mortos
Mas mais um glorioso apogeu foi perdido e reencontrado
capturado nos dedos suaves de Claude
que sentado ao piano
abriu todas as portas com música colorida
e nos fez modernos, embora encharcados de saudades
e temerosos, pois, de que nunca mais
sejamos tão vivos quanto ele um dia foi

De olhos derramados, impressionantemente impressionistas,
somos os seus trôpegos netos

Me pergunto:
O que será do futuro
agora que o mundo é habitado apenas

por crianças?

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Claude Debussy (1862 - 1918)

Arabesque I
(1888)




Reviere (1890)


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domingo, 4 de setembro de 2011

Norbert Elias sociologizando Mozart


Na algazarra da vida, os livros continuam perto de mim. Posso ouví-los murmurando palavras antigas. Se demorei para postar aqui sobre essas leituras, não é por falta de leitura, mas por falta de tempo para escrever.

Foram dois os livros que realmente atravessaram o meu rumo neste último mês. Um foi "Cartas ao pai" de Kafka, do qual falarei depois. O outro foi "Mozart: Sociologia de um gênio" de Norbert Elias. Este segundo me proporcionou uma releitura muito feliz. A primeira vez que li este livro eu estava ainda iniciando o curso de música, e nosso professor de história da arte resolveu nos iluminar um pouco o conceito de "gênio romântico" deixando alguns capítulos deste para o xerox (obrigado, prof. Zan). Anos depois, com os meus papéis trocados, agora sou eu que ensino história da música, e o velho livro me pareceu uma boa chamada. Antes, porém eu haveria de repassá-lo eu mesmo. E não haveria de ser assim?

É sem dúvida o mesmo livro daquela época, mas a reencontro me fez sentí-lo como um texto totalmente novo. Tudo havia mudado em minha mente, como poderia ser este o mesmo livro? Não poderia nunca. Muito mais fácil a absorção, muito mais belos os raciocínios, muito mais audaciosas as teses. O autor contextualiza o indivíduo, um produto de sua época, de um mundo em rápida transformação. Mozart, o foco de seu estudo, é entendido não apenas como um artista, compositor, músico, mas como um frágil e confuso ser humano, ensanduichado entre duas épocas, ensandecido pelo neo-classicismo, e ensimesmado por sua própria complexidade de sentimentos conflitantes. Mozart odiava a aristocracia que tanto lutou para agradar. Dedicou sua vida a tentar conquistar o amor da nobreza, a mesma nobreza que ele tanto desprezava. O autor vê nisso os sinais dos tempos. De uma geração de transição, que não sabe muito bem pra onde ir, mas se recusa a ficar na mesma. Na mente de Mozart, não se via sinais de uma busca ideológica por um novo mundo, mas uma confusa, apaixonada e raivosa rejeição do velho.

Mozart tinha dentro de si dois compositores. Um que compunha música "comercial", feita para agradar os usadores de peruca, como o saltitante concerto para piano No19; e um outro que se recusava a agradar qualquer um a não ser ele mesmo, como podemos ouvir no angustiante concerto para piano No20. O primeiro Mozart estava voltado para o velho mundo, de músicos artesãos, submissos aos gostos da elite, o segundo antecipava audaciosamente o mundo do futuro, de músicos-artistas, livres, inspirados e imprevisíveis. Dois inimigos dentro de um mesmo corpo. Isso não poderia terminar bem.

Concerto para piano No 19 - 1o Mov.



Concerto para piano No 20 - 1o Mov.


Embora o autor não bate o martelo quanto a se Mozart "fracassou" por não conseguir se adequar aos padrões, ou por não querer se adequar aos padrões, (ou ambos) a sensação é que Elias está pondo a culpa da morte prematura e triste do gênio na idéia um tanto fatalista de que Mozart simplesmente nasceu na época errada. Ah... se ao menos tivesse esperado por mais algumas décadas para nascer (ou para morrer), quem sabe teria sido melhor compreendido. Só que aí, é claro, ele não seria Mozart. Ao menos não o Mozart que conhecemos.

Mas a minha reflexão é sobre o dito "fracasso" deste compositor. Mozart morreu amargurado, carente do amor da esposa e do público. Aos seus olhos exigentes, sua vida havia fracassado. O público Vienense o rejeitara. Sua esposa se afastara dele. Todos o consideravam fisicamente feio. Seu pai havia morrido há poucos anos. Sua situação financeira era péssima. É certo que estes fatores contribuíram de alguma forma para sua morte prematura, mas a verdade é que todos esses fatos não são nada anormais à vida de qualquer músico de renome havia ou haveria de viver. Mozart poderia ter sobrevivido. E nesse momento me vem todo o sentido da palavra "fracasso". A verdade é que Elias não propõe que o compositor havia fracassado em nenhum momento. A noção de fracasso, durante todo o tempo, esteve, mais que tudo, somente na cabeça do próprio Mozart. Dentre tantos milhares de músicos da europa, como poderia ser fracassado o segundo mais famoso de seu tempo? (O mais famoso, na época, era Haydn). Músicas dele tocavam nos salões, e seu nome era profundamente admirado de uma maneira que pouquíssimos já haviam sido no ramo. O jovem Mozart havia recebido altas condecorações das mãos do Papa, de reis e príncipes. Frequentava as altas rodas. Em 1790 - no ano anterior de sua morte - tocou na coroação do imperador Leopold II. Do poderia reclamar esse rapaz de origem humilde?

Elias é um autor que trabalha a relação entre os indivíduos e a sociedade. O seu livro mais renomado, "A sociedade dos indivíduos", se voltara para estudar a relação entre o ser único, só, individual e complexo com o todo coletivo, uniformizante e também complexo. Com Mozart ele teve o seu estudo de caso. Um poderia criticar afirmando: "como pode ele saber tanto sobre a vida, as idéias e os sentimentos de alguém que viveu há mais de duzentos anos"? Mas deve-se lembrar da abundância de cartas escritas ao longo de toda uma vida pelo punho de Mozart à sua família. Todas bem preservadas e já muitíssimo estudadas, carregadas das impressões íntimas deste homem sobre o mundo à sua volta. Bem como as cartas escritas por seus parentes. Mozart foi escolhido para este estudo de caso não apenas por ter sido um personagem tão diferenciado, mas porque há abundância de fontes primárias e secundárias para a pesquisa.

CONTINUA

sábado, 30 de julho de 2011

O Povo Brasileiro - Parte 1


Sigo minha leitura.

Após um início rápido e promissor, minha antes ávida leitura do livro de Darcy Ribeiro acabou entrando numa fase mais burocrática e preguiçosa. Não que seja difícil a leitura, mas as distrações diárias têm me atrasado mais do que eu desejava.

Fosse este um livro menos extenso, sinto que eu teria feito um esforço extra para terminá-lo logo, mas sendo um volume de mais de 450 densas páginas, passado o impeto inicial, ainda não vislumbro seu encerramento, e sua leitura começa a me parecer interminável, como se eu estivesse a baldear algum mar.

A parte lida até agora, porém, já merece um primeiro post. Venci a primeira seção, de um total de cinco, chamado "o novo mundo". Darcy começou seu livro olhando para o cenário histórico que deu origem ao nosso povo-nação. Sua visão é historiográfica, mas em momento algum ele perde de vista o tempo presente. Cada fato passado é visto em perspectiva com os seus resultados na atualidade e sua tese é simples. O povo brasileiro é novo, único e condicionado às suas particularidades geográficas e humanas, sobretudo pelo encontro das três grandes etinias constituintes: O índio, o europeu (principalmente ibérico) e o negro.

Diz o nosso sorridente antropólogo:

"No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiriam erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo-nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera de seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser entre os povos, e de existir para si mesmos." página 68

(...)

"Atuando com a ética do aventureiro, que improvisa a cada momento diante do desafio que tem de enfrentar, os iberos não produziram o que quiseram, mas o que resultou de sua ação, muitas vezes desenfreada. É certo que a colonização do Brasil se fez com esforço persistente, teimoso, de implantar aqui uma europeidade adaptada nesses trópicos e encarnada nessas mestiçagens. Mas esbarrou, sempre, com a resistência birrenta da natureza e com os caprichos da história, que nos fez a nós mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual somos, tão opostos a branquitudes e civilidades, tão interiorizadamente deseuropeus como desíndios e desafros." página 70



Darcy nos descobre como o feliz fracasso de um projeto de colonização e dominação mal planejado e executado. O produto de uma mutua destruição e transfiguração de exploradores e explorados que deu à luz esse novo rebento chamado Brasil. O entendimento do processo gerativo passa pelo entendimento de suas motivações originais. Darcy constata que grandes civilizações não surgem por acaso, sendo resultados sim de um tipo de ímpeto coletivo difuso que pode desencadear grandes expansionismos que mudam os mapas e fazem a alegria dos livros de história. É preciso compreender esse ímpeto ibérico que o fez atravessar um oceano para dar nessas cercanias tropicais e me parece que o autor foi feliz em sua análise. Constatou ele a empolgação militar-religiosa pela vitória dos cristãos sobre os mouros e judeus na península ibérica no século XV como o contexto primordial que deu aos portugueses a motivação que precisavam para se achegar em tão distantes pradarias. Motivação essa que batiza ele de imperialismo "mercantil salvacionista".

"Aqui nenhuma terra se desperdiça com o povo que se ia gerando. De toda ela se apropria a classe dominante, menos para uso, porque é demasiado demais, mas a fim de obrigar os gentios subjugados a trabalhar em terra alheia. Nenhuma liberdade se consente, também, porque se trata com hereges a catequizar, livrando-os da perdição eterna."

"Nada mais natural do que pensar assim para um ibero que acabava de expulsar os hereges sarracenos e judeus, que os haviam dominados por séculos. Ainda com o fervor das cruzadas gloriosas com os mouros, eles se assanharam, aqui, contra o gentio americano." (página 70 e 71)


Nosso autor discorre sobre como essa empolgação coletiva levou os portugueses (homens) a atravessar incontáveis, léguas marítimas, se arriscando ao escorbuto e às tempestades, para o encontro de selvagens que lhes ofereciam as filhas em casamentos. O recorrente assunto do encontro sexual entre europeus lusitanos e nativos é bem estudado e comentado por vários autores. Darcy dá sua contribuição apaixonada, em belo português.

O povo brasileiro - O filme

Por fim, não poderia deixar de disponibilizar o longo documentário "O povo Brasileiro" feito com base no livro, e incluindo belíssimos depoimentos de Darcy. Vale a pena.

Citação sobre a não-violência


"A não-violência não consiste em renunciar a toda luta real contra o mal. A não-violência, tal como eu a concebo, empreende uma campanha mais ativa contra o mal que a Lei do Talião, cuja natureza mesma traz como resultado o desenvolvimento da perversidade. Eu levanto, frente ao imoral, uma oposição mental e, por conseguinte, moral. Trato de amolecer a espada do tirano, não cruzando-a com um aço mais afiado, mas defraudando sua esperança ao não oferecer resistência física alguma. Ele encontrará em mim uma resistência da alma, que escapará de seu assalto. Essa resistência primeiramente o cegará e em seguida o obrigará a dobrar-se. E o fato de dobrar-se não humilhará o agressor, mas o dignificará... "
Mahatma Gandhi

Inclui na minha lista de futuras leituras o livro "minha vida e minhas experiências com a verdade" de Gandhi. Apesar de ser uma autobiografia, é uma obra de filosofia pura. Para completar incluo aqui os sete pecados sociais apontados por Gandhi.

Política sem princípios,
Riqueza sem trabalho,
Prazer sem consciência,
Conhecimento sem caráter,
Comércio sem moralidade,
Ciência sem humanidade e
Caridade sem sacrifício