domingo, 4 de setembro de 2011

Norbert Elias sociologizando Mozart


Na algazarra da vida, os livros continuam perto de mim. Posso ouví-los murmurando palavras antigas. Se demorei para postar aqui sobre essas leituras, não é por falta de leitura, mas por falta de tempo para escrever.

Foram dois os livros que realmente atravessaram o meu rumo neste último mês. Um foi "Cartas ao pai" de Kafka, do qual falarei depois. O outro foi "Mozart: Sociologia de um gênio" de Norbert Elias. Este segundo me proporcionou uma releitura muito feliz. A primeira vez que li este livro eu estava ainda iniciando o curso de música, e nosso professor de história da arte resolveu nos iluminar um pouco o conceito de "gênio romântico" deixando alguns capítulos deste para o xerox (obrigado, prof. Zan). Anos depois, com os meus papéis trocados, agora sou eu que ensino história da música, e o velho livro me pareceu uma boa chamada. Antes, porém eu haveria de repassá-lo eu mesmo. E não haveria de ser assim?

É sem dúvida o mesmo livro daquela época, mas a reencontro me fez sentí-lo como um texto totalmente novo. Tudo havia mudado em minha mente, como poderia ser este o mesmo livro? Não poderia nunca. Muito mais fácil a absorção, muito mais belos os raciocínios, muito mais audaciosas as teses. O autor contextualiza o indivíduo, um produto de sua época, de um mundo em rápida transformação. Mozart, o foco de seu estudo, é entendido não apenas como um artista, compositor, músico, mas como um frágil e confuso ser humano, ensanduichado entre duas épocas, ensandecido pelo neo-classicismo, e ensimesmado por sua própria complexidade de sentimentos conflitantes. Mozart odiava a aristocracia que tanto lutou para agradar. Dedicou sua vida a tentar conquistar o amor da nobreza, a mesma nobreza que ele tanto desprezava. O autor vê nisso os sinais dos tempos. De uma geração de transição, que não sabe muito bem pra onde ir, mas se recusa a ficar na mesma. Na mente de Mozart, não se via sinais de uma busca ideológica por um novo mundo, mas uma confusa, apaixonada e raivosa rejeição do velho.

Mozart tinha dentro de si dois compositores. Um que compunha música "comercial", feita para agradar os usadores de peruca, como o saltitante concerto para piano No19; e um outro que se recusava a agradar qualquer um a não ser ele mesmo, como podemos ouvir no angustiante concerto para piano No20. O primeiro Mozart estava voltado para o velho mundo, de músicos artesãos, submissos aos gostos da elite, o segundo antecipava audaciosamente o mundo do futuro, de músicos-artistas, livres, inspirados e imprevisíveis. Dois inimigos dentro de um mesmo corpo. Isso não poderia terminar bem.

Concerto para piano No 19 - 1o Mov.



Concerto para piano No 20 - 1o Mov.


Embora o autor não bate o martelo quanto a se Mozart "fracassou" por não conseguir se adequar aos padrões, ou por não querer se adequar aos padrões, (ou ambos) a sensação é que Elias está pondo a culpa da morte prematura e triste do gênio na idéia um tanto fatalista de que Mozart simplesmente nasceu na época errada. Ah... se ao menos tivesse esperado por mais algumas décadas para nascer (ou para morrer), quem sabe teria sido melhor compreendido. Só que aí, é claro, ele não seria Mozart. Ao menos não o Mozart que conhecemos.

Mas a minha reflexão é sobre o dito "fracasso" deste compositor. Mozart morreu amargurado, carente do amor da esposa e do público. Aos seus olhos exigentes, sua vida havia fracassado. O público Vienense o rejeitara. Sua esposa se afastara dele. Todos o consideravam fisicamente feio. Seu pai havia morrido há poucos anos. Sua situação financeira era péssima. É certo que estes fatores contribuíram de alguma forma para sua morte prematura, mas a verdade é que todos esses fatos não são nada anormais à vida de qualquer músico de renome havia ou haveria de viver. Mozart poderia ter sobrevivido. E nesse momento me vem todo o sentido da palavra "fracasso". A verdade é que Elias não propõe que o compositor havia fracassado em nenhum momento. A noção de fracasso, durante todo o tempo, esteve, mais que tudo, somente na cabeça do próprio Mozart. Dentre tantos milhares de músicos da europa, como poderia ser fracassado o segundo mais famoso de seu tempo? (O mais famoso, na época, era Haydn). Músicas dele tocavam nos salões, e seu nome era profundamente admirado de uma maneira que pouquíssimos já haviam sido no ramo. O jovem Mozart havia recebido altas condecorações das mãos do Papa, de reis e príncipes. Frequentava as altas rodas. Em 1790 - no ano anterior de sua morte - tocou na coroação do imperador Leopold II. Do poderia reclamar esse rapaz de origem humilde?

Elias é um autor que trabalha a relação entre os indivíduos e a sociedade. O seu livro mais renomado, "A sociedade dos indivíduos", se voltara para estudar a relação entre o ser único, só, individual e complexo com o todo coletivo, uniformizante e também complexo. Com Mozart ele teve o seu estudo de caso. Um poderia criticar afirmando: "como pode ele saber tanto sobre a vida, as idéias e os sentimentos de alguém que viveu há mais de duzentos anos"? Mas deve-se lembrar da abundância de cartas escritas ao longo de toda uma vida pelo punho de Mozart à sua família. Todas bem preservadas e já muitíssimo estudadas, carregadas das impressões íntimas deste homem sobre o mundo à sua volta. Bem como as cartas escritas por seus parentes. Mozart foi escolhido para este estudo de caso não apenas por ter sido um personagem tão diferenciado, mas porque há abundância de fontes primárias e secundárias para a pesquisa.

CONTINUA

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